terça-feira, 31 de maio de 2022

"Terra" de Sebastião Salgado completa 25 anos



Em 17 de abril de 1996, milhares de trabalhadores sob a bandeira do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) entraram na fazenda Giacomet-Marodin, no interior do Paraná, com 83 mil hectares, uma das maiores ocupações na história do movimento, com o fotógrafo Sebastião Salgado como testemunha.

A cerca de 2.700 km dali, no mesmo dia, em uma curva de Eldorado do Carajás, no Pará, outros sem-terra, que seguiam até Belém, foram atacados pela Polícia Militar em uma ação para desbloquear a rodovia PA-150. A ação deixou 19 sem-terra mortos.

Salgado recebeu a notícia ainda no Paraná e viajou em um avião alugado para o sudeste do Pará no dia seguinte. Em meio ao sepultamento coletivo das vítimas, ele fotografou Luiza Alves sentada em uma cadeira, rodeada por pessoas, chorando a morte do filho Oziel, 17, a vítima mais jovem.

Meses antes do massacre, ela, o marido e os outros filhos tinham embarcado para Confresa (MT) porque Luiza queria ficar perto da mãe. Deixaram no Pará dois filhos: Oziel, que sonhava com um pedaço de terra que desse sossego aos pais, e Antônio, mais velho que o irmão.

“Tem muita coisa que não lembro mais, não. Da hora que eu vi ele, eu não dei conta de nada mais, fiquei por conta dos outros, sabe? Não posso olhar para [a foto], que é uma lembrança muito triste. Olho e fico mal”, diz Luiza hoje, aos 71, emocionada.

“Eu reconheci ele um pouco pela testinha, o cabelo. O rosto estava diferente. Só reconheci da testa para trás. Era ele mesmo.”

Os momentos daquele abril, época de mobilização forte do MST pelo país, são alguns dos registros feitos durante cerca de dois anos em que Salgado acompanhou o movimento, reunidos no livro “Terra” (Companhia das Letras), há 25 anos.

A ideia surgiu quando o fotógrafo acompanhava o deslocamento de populações pelo mundo e entrou em contato com o MST para entender o abandono do campo em direção às cidades no Brasil, que mudava o desenho do país.

As imagens de “Terra”, desde a vida comum nos acampamentos à dor da violência, viajaram o mundo com 2.000 kits de exposição impressos, lançamento em cidades como São Paulo, Rio e Lisboa, ajudaram na compra da sede do movimento na capital paulista e com o terreno da Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP).

O projeto, com prefácio do português José Saramago e músicas de Chico Buarque, teve ainda uma quarta autoria, lembra Salgado, sua esposa Lélia Wanick Salgado.


“O livro é um manifesto político feito por quatro autores. A gente só fala das minhas fotografias, do Saramago e do Chico, mas a Lélia que concebeu o livro, imaginou pela primeira vez na história da fotografia uma exposição tirada em 2.000 exemplares”, diz ele.

João Pedro Stedile, 68, da direção nacional do MST, participou do lançamento da obra e diz que chegou a acompanhar Salgado em alguns momentos, mas que o movimento não tinha dimensão do que seria o trabalho.

O contexto, diz, era um Brasil em crise econômica e social, com grande contingente de sem-terra pelo país, e ao mesmo tempo, com repressão aos movimentos.

“O livro, as fotos em cartazes, os eventos, contribuíram para a difusão da luta do MST e também lhe deram uma certa proteção de apoio da opinião pública. A nível nacional, a opinião pública brasileira, e em especial a grande imprensa, se deu conta de que o MST era um movimento justo e necessário para combater o atraso das forças produtivas no campo, gerar emprego e futuro para milhões de brasileiros olvidados”, afirma.

Entre as fotografias mais conhecidas estão dois retratos de meninas sem-terra, que viviam em acampamentos com as famílias, em busca de terra.

Uma delas, Joceli, então aos cinco anos, com olhos claros que encaram a câmera, Salgado encontrou no Paraná. Hoje, ela vive em um pré-assentamento na mesma região, ainda à espera do próprio lote e prefere não dar entrevistas.

O local onde vive é uma das 70 comunidades do MST no estado, que lutam pela regularização e formalização das terras, segundo o movimento. Há acampamentos no Paraná onde as famílias esperam há mais de 20 anos por um pedaço de terra.

A outra menina, Nete Alves Silva, também de olhar marcante, tímida pela falta de costume com a câmera, posou para ele em uma escola em Barra da Onça, Poço Redondo, no sertão de Sergipe.
Hoje, aos 34, Nete está assentada na região com o marido e o filho David Walter, de nove meses.
A foto, que ela tem em um quadro em casa, foi usada ainda na Campanha da Fraternidade, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em 1998.

“Eu lembro que a situação era difícil, a gente comia a merenda da escola, porque não tinha comida em casa”, lembra.

“O projeto da agricultura brasileira acabou sendo o agronegócio, que é a expulsão de mão de obra, agricultura em grande escala mecanizada, envenenada. Todo mundo hoje se vangloria de ter um país que tem uma grande agricultura, mas isso teve um custo social brutal, de expulsão de uma grande parte da população brasileira, que poderia ter ficado no campo, vivido de outra forma, e hoje é marginalizada nas cidades”, afirma.

“É imoral o que passou, o que se passa no campo brasileiro hoje. Tudo isso, toda essa política reacionária do campo, acabou gerando essa monstruosidade que está no poder hoje no Brasil, o Bolsonaro é o fruto de tudo isso.”

O MST é frequentemente citado pelo presidente em discursos. Stedile responde dizendo que Jair Bolsonaro (PL) defende ideias fascistas e irresponsáveis, que incitam uso de armas e violência, sem resolver questões como produção de alimentos e emprego.

“Infelizmente muitas famílias estão acampadas há muitos anos, sobretudo porque, desde a eclosão da crise capitalista em 2014, e depois com o golpe contra a Dilma, o estado brasileiro e os governos existentes abandonaram a reforma agrária e as políticas públicas de apoio ao modelo da agricultura familiar”, avalia.

Passados 26 anos desde o massacre de Carajás, Antônio, irmão de Oziel, que ficou com ele no Pará, foi assentado, e diz que dói pensar na forma como o irmão morreu.

Para Eric Nepomuceno, autor de “O Massacre: Eldorado dos Carajás: Uma história de impunidade” (Record), o episódio mostra como a Justiça brasileira é falha, quando se trata de pessoas poderosas.
“Eu definiria o massacre de Eldorado do Carajás como especialmente simbólico. Não apenas pelo número de vítimas: é que ele foi documentado. Houve testemunhas de fora, não apenas entre os sobreviventes. Ficou o registro da barbaridade não só das forças de segurança, mas também dos mandantes e da omissão criminosa de um governo estadual. O mais preocupante é que a violência contra lideranças populares dos sem-terra continua matando gente”, diz.

Há ainda cerca de 28 pessoas que se denominam mutilados de Carajás, feridos que vivem com sequelas e nunca tiveram reparação, conta Lindomar de Jesus Cunha, o Mazinho, que estava com Oziel no dia do massacre.

“Estamos trabalhando para mover uma ação contra o Estado. É uma batalha difícil, porque se passaram 26 anos, prova some, papel se acaba e hoje as pessoas precisam provar que estavam no massacre. Às vezes, a pessoa está na fita, mas como está diferente hoje, a perícia não quer reconhecer”, conta ele.

“Eu tinha 22 anos, hoje tenho 45. Tenho um pedaço de bala na perna ainda”.

No Brasil, desde a divisão de terras nas capitanias hereditárias, com a chegada dos portugueses, se perpetuou a ideia da terra como título de nobreza, quando deveria ser usada para trabalho e produção, diz Salgado.

“[Carajás é] uma lembrança marcante, mas vi coisas fabulosas em relação ao MST, vi assentamentos em Santa Catarina produzindo erva-mate, assentamentos fantásticos, vi pessoas no interior do Paraná vivendo felizes, vi escolas rústicas, escolas primárias para crianças, vi funcionar os assentamentos e isso para mim foi uma coisa colossal”, afirma.



Texto extraído de: https://guiasoumais.com.br/terra-de-sebastiao-salgado-faz-25-anos-e-personagens-de-livro-ainda-esperam-lote/

Nossa comida tem história

‘Comida típica mineira não surgiu da fome, isso é ilógico’, defende pesquisador


Argumento é sustentado no livro “Nossa Comida Tem História”, lançado em celebração aos 300 anos de Minas Gerais.

Com o avanço dos estudos sobre a formação do gosto na cultura alimentar em Minas Gerais, versões antes incontestáveis a respeito da construção de nossos modos de comer passam a ser questionadas. 

Uma delas diz respeito sobre como a invejável diversidade de ingredientes e receitas teriam surgido e florescido entre as montanhas mineiras. A ideia de que a fome, a falta e a carestia, especialmente no período colonial, foram as causadoras dessa riqueza é contestada pelo professor José Newton Coelho Meneses, no livro “Nossa Comida Tem História”, lançado recentemente.

“Há certo romantismo da tradição histórica em dramatizar um pouco essa construção cultural”, avalia o pesquisador, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Para ele, as épocas de exploração não impediram a diversidade alimentar no cotidiano da população local. Os documentos analisados pelo historiador demonstram a versatilidade na cozinha já na época colonial, fruto de uma fruição cultural que promoveu um diálogo entre povos de origens distintas. “Isso resultou numa comida diversa e nada carente”, explica.

Um ponto central defendido pelo autor consiste em avaliar o contexto demográfico, social e econômico de Minas Gerais naquela época. “Minas era a região mais populosa e foi o espaço que mais recebeu imigração, tanto de escravizados quanto de outros lugares, e foi o mais populoso até 1914. Como o Estado tão populoso pode ser carente em comida? É algo ilógico”, argumenta o pesquisador.

Sob o ponto de vista econômico, a atividade minerária se expandia com força nesse momento, e se desdobrava em uma ampla produção alimentar, necessária ao consumo das pessoas envolvidas na extração de minério. “O maior meio de enriquecer em Minas era de produzir alimentos para os mineradores”, contextualiza José Newton.

Esse tripé que envolve aquecimento econômico, diversidade de ingredientes naturais e intenso crescimento populacional alicerçam a discordância do autor a respeito da hipótese de carência e fome em Minas durante os séculos 18 e 19.
 
 

Construção do gosto


Segundo o pesquisador, essa complexa construção do gosto proporcionou que a alimentação em Minas Gerais tivesse a criatividade como ingrediente de primeira ordem. “Sempre usamos essa diversidade para inventar, criar. Essa capacidade de construir comidas foi algo primordial em Minas Gerais”, diz.

Exemplo dessa riqueza encontra-se registrado nos escritos do naturalista Auguste de Saint-Hilaire, um dos primeiros cientistas europeus a percorrer os territórios do Brasil colônia. O pesquisador francês relata espanto ao conferir como a engenhosidade resultava, por exemplo, no pão de inhame, uma quitanda encontrada à época na região do Alto Jequitinhonha. “Ele achou interessante como o mineiro transformava aquele tubérculo insosso numa quitanda tão nutritiva”, informa José Newton.

A mesma surpresa é registrada quando o naturalista europeu acessou casas de famílias mineiras bastante pobres durante o século 19. “Ele cita como aquele feijão com couve foi transformado em uma gostosa comida que o dono da casa preparou para a família”, contextualiza o professor da UFMG.


São vestígios como esses que sustentam a tese defendida pelo organizador do livro. Conforme o conjunto de artigos da publicação, a comida mineira é edificada a partir de heranças portuguesas, africanas e indígenas, e consiste na materialização da identidade cultural desse povo residente entre as montanhas.

Viabilizada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), a obra foi publicada em celebração aos 300 anos do estado.

O conteúdo na íntegra foi disponibilizado pela ALMG neste link.



O sociólogo Carlos Alberto Dória fala de seus livros...

 


Frango com quiabo, tutu de feijão e leitão a pururuca são pratos tipicamente mineiros, certo? Não para o sociólogo Carlos Alberto Dória, doutor pela Unicamp e talvez o mais notório estudioso da culinária brasileira da atualidade. Segundo ele, existem uma série de mitos – ou, como ele prefere dizer, “racontos” – sobre como enxergamos a trajetória da nossa cozinha. Um deles é a ideia da tradicional comida de Minas.

Dória explica que ela surgiu a partir dos anos 1920, no contexto do Modernismo, quando houve um esforço de fazer uma representação regionalizada da cozinha brasileira também como parte de disputas oligárquicas entre os estados. E Minas fez o trabalho caprichado, contratando uma série de intelectuais para criar o que seria a identidade mineira. O estado se “apropriou” então de uma comida caipira que era comum a uma região que envolvia também São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, parte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, além da região das Missões, no Rio Grande do Sul – território que Dória chama de “Paulistânia”.

Essas e outras visões que desafiam interpretações consensuais estão nos livros “Formação da Culinária Brasileira – Escritos sobre a Cozinha Inzoneira” (2014) e “A Culinária Caipira da Paulistânia – A História e as Receitas de um Modo Antigo de Comer” (2018), que acabam de ser relançados pela Editora Fósforo. O primeiro é composto por uma série de ensaios que passeiam pelos ingredientes, as técnicas e os processos sociais que levaram à criação dos hábitos alimentares e dos pratos nacionais. O segundo investiga a fundo a cozinha caipira, que tinha como pilar o milho, o feijão e a abóbora, influência dos indígenas guaranis, e o porco e a galinha, trazidos pelos portugueses.


Dória é figura conhecida nas rodas gastronômicas do país, entre chefs e críticos – foi Helena Rizzo, chef e sócia do Maní, inclusive, que escreveu o prefácio desta nova edição do primeiro livro. Ele também é parte do movimento que organizou, entre outras ações, o Banquetaço de 2017 em reação à proposta do então prefeito João Doria de dar um granulado alimentar que recebeu o a pelido de “ração humana” a pessoas em situação de rua. Em 2020, formalizou sua escola de cursos, a Escola do Gosto, e abriu junto ao chef Marcelo Corrêa Bastos, com quem assina o segundo livro, o Lobozó, restaurante de cozinha caipira na Vila Madalena, em São Paulo.

Em entrevista a Gama, o sociólogo fala do papel da indústria do turismo na regionalização da comida brasileira, explica porque nosso olhar para a feijoada é essencialmente romântico e critica o entretenimento à la MasterChef, focado na competitividade.

"Aqui, quando chegaram os colonizadores, comia-se animais como anta, tatu, capivara, tamanduá. Após um século e meio, houve uma colonização do gosto"



G |Você desconstrói a ideia de que a formação da culinária brasileira seria fruto da mistura da culinária dos índios, dos negros e do português branco. Por quê?

Carlos Alberto Dória | 
Nós ainda temos um viés de análise da culinária que vem de uma teoria já antiga, do Gilberto Freyre (1900-1987), do Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) [os dois intelectuais que mais contribuíram para o entendimento da culinária nacional], especialmente em temas como a miscigenação – não que ela não tenha existido, mas não me parece que tenha sido bem tratada. Em consequência dessas ideias, acabou se inventando um indígena e um negro genéricos, o que não contempla a diversidade de etnias, línguas e costumes dessas populações. É muito mais promissor para entender a especificidade da culinária, por exemplo, estudar a relação da comida baiana com a da Iorubalândia, cultura presente também em Cuba e nos EUA. Além disso, as influências têm muitas nuances. Veja o dendê, por exemplo, que todo mundo diz que veio da África com os escravos. Na verdade, o dendê veio logo no início da colonização com funções meramente cosméticas. Só depois do fim da abolição, os antigos comerciantes de escravos passaram a trazer o óleo de dendê que é usado na culinária, e isso foi só no século 19. Então hoje se faz um esforço de superar essas visões românticas e ir em direção a uma história mais real. E, para além disso, estudar outras influências: a jaca e a manga vieram da Índia, por exemplo, e ninguém discute isso.


G |Por que temos essa visão romântica da história da culinária?

CD | 
Todos os relatos sobre a formação da culinária brasileira começaram no período romântico, na segunda metade do século 19, quando se começou a discutir como contar a história do país. Um país novo tem que ter uma literatura, uma música, um teatro próprios. Então surgiram vários relatos mitológicos. E um deles é sobre o que seria a culinária brasileira. Por exemplo: é muito comum se falar da mandioca, que veio com os indígenas. Mas se fala muito pouco do milho, que também foi domesticado por eles e importantíssimo em um vasto território do país – que eu chamo de Paulistânia. Então, falar da mandioca é escolher um ponto de vista da narrativa dessa história, com o herói sendo a mandioca. Porque no fundo achavam que o milho era o herói das civilizações andinas, então não era uma coisa autenticamente nacional, enquanto a mandioca nos particulariza. E querer se particularizar é uma questão politico-ideológica, não uma questão culinária.

Farinhas de milho e de mandioca, consumidas de norte a sul do país 



G |Por que os regionalismos culinários estaduais não fazem sentido sociologicamente?

Carlos Alberto Dória | 
O regionalismo tomou corpo como um movimento político na República Velha, quando as oligarquias dos vários estados disputavam recursos públicos federais. E há um esforço muito grande, especialmente depois dos anos 1920, com o Modernismo e Mário de Andrade (1893-1945), de considerar a culinária um patrimônio. Em 1926, surgiu o manifesto regionalista escrito por Gilberto Freyre (1900-1987), e ali ele fez uma representação regionalizada da cozinha brasileira. E isso acabou prevalecendo, e foi muito explorado pela indústria do turismo. Eu procuro desenvolver uma metodologia da territorialização da culinária popular, não da regionalização. Por exemplo, há uma diferença muito marcante no país em relação ao consumo de salsinha e coentro: no Sudeste quase não se come coentro, e no Nordeste quase não se usa salsinha. Isso se deve ao fato de que os portugueses que vieram para São Paulo, São Vicente, vieram do norte de Portugal, e lá eles comiam salsinha. E os que foram para o Nordeste eram do sul de Portugal, onde se comia coentro. Então é nesse nível de detalhe que nós queremos entender a culinária hoje.
Há um esforço de tipificação da feijoada brasileira, mas ela tem origem portuguesa – há uma tradição de feijoadas muito antiga em Portugal


G |Qual o papel da indústria do turismo nisso?

Carlos Alberto Dória |
A indústria do turismo é competitiva, os vários destinos disputam clientes. Então o regionalismo culinário acaba sendo ingrediente para essa indústria, a exemplo do que foi feito na França com o Guia Michelin no começo do século 20, que queria te dizer o que você ia comer quando viajasse para tal lugar. Essa proposta de passear pelo país precisou encontrar diferenças entre as regiões para ser mais atrativa. Só que há uma dificuldade em tipificar cozinhas que são muito próximas – como eu vou diferenciar a moqueca que se faz em Salvador da que se faz 300, 400 km mais para baixo? Ah, uma não tem dendê, é outra coisa, é muito diferente. Então se foi criando identidades com essa intenção turística e político-ideológica. Desse ponto de vista, estamos envoltos em tradições inventadas, fazendo referência ao livro do historiador inglês Eric Hobsbawm.


G |Mas e a feijoada?

CD |
Também me parece que nesse influxo modernista e nacionalista há um esforço de tipificação da feijoada brasileira. De dizer que essa feijoada feita com feijão preto, laranja, farofa e couve é “tipicamente um prato nacional brasileiro”, porque a farinha de mandioca representa o índio, o feijão representa os negros, etc. E usar isso como metáfora tudo bem, mas não tem nada a ver com a história da feijoada, que é uma coisa de origem portuguesa – há uma tradição de feijoadas muito antiga em Portugal, têm regiões de lá onde há feijoadas muito próximas à “brasileira”. O feijão foi elemento central na dieta colonial e aparecia com muitas feições.


Feijoada da Paulistânia, do restaurante Lobozó, feita com feijão rosinha ou jalo cozido com porco, abóbora, milho, e servido com couve refogada, arroz, farofa de farinha de milho e pedaços de laranja 


G |Seu último curso foi sobre a hierarquização das carnes na história do Brasil. Do que se trata?

Carlos Alberto Dória | 
Eu tenho muito interesse em entender a colonização do gosto. Aqui, quando chegaram os colonizadores, tínhamos um país com flora e fauna exuberantes e uma população que comia animais como anta, tatu, capivara, tamanduá. Um século e meio depois, quase todo território estava ocupado por boi, porco e galinha. Houve uma colonização do gosto pela supressão das carnes da terra – que, aliás, os portugueses apreciavam muito, principalmente a do tatu. Esse enfoque me permite também analisar a culinária do boi, aproximando por exemplo o Nordeste do Rio Grande do Sul. Porque quando começaram as grandes secas no Nordeste, houve a transferência da produção do charque do Ceará para o Rio Grande do Sul. E, enquanto no Nordeste o boi tinha um valor econômico muito maior, porque era criado para fornecer tração animal e alimento para os engenhos, no Sul ele só tinha valor para a extração do couro, não se aproveitava a carne. E aí você tem a origem do churrasco: os guaranis pegavam essa carne que não tinha valor e faziam churrasco.


G |Você também costuma contestar a ideia de que gostamos de doces muito doces. Por que?

CD | 
O sociólogo cubano Fernando Ortiz dizia que a agroindústria do açúcar significava a total submissão de Cuba ao capitalismo mundial. E isso é muito verdadeiro aqui também. O açúcar é um elemento da ocidentalização das culinárias mundiais todas. Que ele venha disfarçado de leite condensado, chocolate ao leite, etc, não importa, mas é algo que vêm das entranhas do capitalismo agroindustrial. E o seu uso descontrolado também se deve a razões econômicas. Por exemplo: você pega uma compota de pêssego ou goiaba e o maior componente ali é o açúcar, porque ele é muito mais barato do que a polpa de fruta. Então existe um sacrifício da qualidade em prol de uma economicidade, e a gente não pode perder isso de vista. E daí é um passo para quererem nos convencer de que comer açúcar desmedidamente é da tradição e do gosto brasileiro – isso é uma bobagem. Se você olhar um livro como o “Doceiro Nacional”, do século 19, as receitas tinham menos açúcar do que as de hoje. Então há uma introdução crescente de açúcar pela indústria.
O açúcar é um elemento da ocidentalização das culinárias mundiais, é algo que vêm das entranhas do capitalismo agroindustrial


G |Qual o papel dos chefs contemporâneos hoje nesse “resgate” da culinária brasileira?

Carlos Alberto Dória | 
Todos os chefs têm uma importância: eles educam o gosto, são professores do gosto. Tem alguns fazendo um trabalho bastante interessante, como a Helena Rizzo, o Rodrigo Oliveira, o Alex Atala. Chamem isso do que for, de cozinha brasileira, regional, afetiva. E atrás vem vindo uma nova geração que também tem essas preocupações. Nisso aparecem desvios, que são esses “master chefs” da vida. Aí são discursos falsos, no sentido de artificiais, com um sujeito que atravessa aquela maratona achando que sai de lá um grande cozinheiro. Isso é bastante nocivo, porque não traz nenhuma descoberta ou reflexão nova. Tem gente ali fazendo espuma, coisa que o Ferran Adriá fazia há 25 anos.


G |Por que você não aprecia esse tipo de entretenimento culinário?

CD | 
A culinária é a transformação da natureza em alimento e isso implica em uma prática cooperativa. O que esses programas fazem é transformar a culinária numa prática competitiva. E eu acho a competitividade o pior aspecto do capitalismo. Ainda mais numa época como a nossa, em que a gente precisa tanto de solidariedade entre as pessoas, a competição é o contrário do que eu espero como ideal de civilização. Então me incomoda que eles tenham tanta audiência. Eu acho que é muito ruim viciar as pessoas em eliminar o outro.


G |Qual a ideia do Lobozó, seu restaurante com o chef Marcelo Corrêa Bastos?

CD | 
Nosso desafio é reinserir a tradição da culinária caipira na vida moderna. Nesse ano e meio nós já revolucionamos a percepção das pessoas em relação ao frango caipira, por exemplo, é uma coisa bem diferenciada do que se faz no resto da cidade. Nós também retomamos a paçoca do Vale Paraíba como ela é, nada a ver com essas paçocas que se vende no caixa da padaria. No livro, nós reunimos 270 receitas, e a gente só mexeu em meia dúzia, então tem assunto aí para uns 20 anos. A abertura foi bastante prejudicada pela pandemia, mas minha ideia é que ele seja também uma referência cultural, um laboratório mesmo.



Texto extraído de: https://gamarevista.uol.com.br/formato/conversas/culinaria-nacional-sociologo-carlos-alberto-doria/
Fonte Imagem: https://gamarevista.uol.com.br/formato/conversas/culinaria-nacional-sociologo-carlos-alberto-doria/

A culinária caipira da Paulistânia: A história e as receitas de um modo antigo de comer



“A culinária caipira é a forma de alimentação que resulta da reiteração dessas práticas agrícolas, capazes de nivelar todo mundo na hora de comer, nesse longo percurso que começa nos primórdios do século 16, na capitania de São Vicente, e avança até o início do século 19.”
Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos

Ao desafiar interpretações consensuais, os autores recuperam a relevância de ingredientes brasileiros e práticas agrícolas tradicionais. Fruto do encontro das culturas indígena e portuguesa, a culinária caipira é tão antiga quanto a chegada das caravelas, porém seu papel na formação do Brasil ainda é pouco conhecido. A culinária caipira da Paulistânia se dispõe a compensar essa falta. Neste livro fundamental, Carlos Alberto Dória, um dos principais e mais eruditos pesquisadores da alimentação e da gastronomia do país, uniu-se a Marcelo Corrêa Bastos, chef conhecido por sua inventividade e seu talento, para traçar um panorama da cozinha caipira. O resultado é um saboroso exercício histórico, literário e gastronômico acompanhado por quase 270 receitas que oferecem uma ponte entre a história e o cotidiano, a teoria e a prática. Lançado anteriormente pela editora Três Estrelas e esgotado há algum tempo, o livro ganha nova publicação pela Fósforo com prefácio de João Pedro Stédile.



Texto extraído de: https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/a-culinaria-caipira-da-paulistania-carlos-alberto-doria/
Fonte Imagem: https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/a-culinaria-caipira-da-paulistania-carlos-alberto-doria/

Formação da culinária brasileira: Escritos sobre a cozinha inzoneira


“Este não é um livro de história, mas seus ensaios, que se apoiam — com certa licença conceitual — na antropologia e na sociologia, buscam ampliar a reflexão sobre a cozinha brasileira e libertá-la de uma visão estreita, engessada pelo tempo, por ideias feitas e preconceitos.”
Prefácio de Helena Rizzo


O que constitui a culinária brasileira? Quais são suas bases histórico-sociais? Combinando erudição e clareza, sólida pesquisa e estilo polêmico, Carlos Alberto Dória apresenta em Formação da culinária brasileira a trajetória de nossa cozinha desde os tempos coloniais até os dias de hoje. Uma surpreendente história do Brasil à mesa emerge de ensaios que propiciam tanto ao especialista quanto ao leigo uma nova visão sobre os ingredientes, as técnicas culinárias e os processos sociais que levaram à criação dos hábitos alimentares e dos pratos nacionais. Clássico do gênero no Brasil, o livro ganha nesta nova edição da Fósforo um prefácio inédito da chef Helena Rizzo. E se encerra com um conjunto de propostas para a renovação da nossa gastronomia em que o autor relaciona as qualidades que podem garantir a ela um futuro vigoroso.



Texto extraído de: https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/formacao-culinaria-brasileira-carlos-alberto-doria/
Fonte Imagem: https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/formacao-culinaria-brasileira-carlos-alberto-doria/