Se a água é a substância fundamental para a vida, talvez não haja metáfora
melhor para representar a mãe da humanidade.
Iemanjá, divindade cuja data é celebrada em 2 de fevereiro, é a
rainha das águas e, acreditam os que a cultuam, a figura materna que irmana
todas as pessoas.
Em terras brasileiras — ou seja, nas práticas religiosas trazidas por africanos na diáspora forçada durante os séculos de regime escravagista e tráfico de mão de obra compulsória —, o orixá feminino ganhou ainda um significado que remete à ancestralidade.
Afinal, se entendermos as costas brasileira e do continente africano
como duas margens do mesmo imenso rio, o Oceano Atlântico, é Iemanjá quem
promove a união, por ser ela a divindade das águas.
"Iemanjá é a representação da grande mãe da tradição
iorubá", explica o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William
Eugênio, doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
"Seu nome vem da expressão 'a mãe dos peixes' ou 'a mãe cujos filhos são como peixes'. É considerada a mãe de todos, a que nos prepara para a vida, nos dá a imensidão das águas para que possamos realizar todas as potencialidades", afirma Eugênio. Na língua original, seu nome é Yemoja.
Contudo, atualmente há uma aparente contradição que se torna
evidente: se a divindade é originalmente negra, por que sua representação mais
comum em terras brasileiras é uma mulher branca?
A resposta estaria na violência do processo de sincretismo, muitas
vezes romantizado como algo inerente à chamada "democracia racial".
Dos rios para o mar
Para os que creem na divindade, ela tem a propriedade de
"comandar as cabeças", reger o domínio da consciência.
"Na tradição iorubá, dizem que a cabeça carrega o corpo, então,
é ela quem traz o equilíbrio emocional e psíquico", prossegue o babalorixá
Eugênio.
"Yemoja é a mãe de todas as águas. Se existe água, existe Yemoja, se nós existimos é porque Yemoja existe. Não há uma cabeça que Yemoja não tocou e cuidou. e não há uma cabeça que Yemoja não possa tocar e cuidar", diz a estudiosa do tema Yasmin Fernandes Sales dos Santos, psicóloga e mestre em sociologia política.
"Iemanjá é um orixá, ou seja, uma divindade africana cultuada a
partir do panteão divino dos povos iorubás. Embora, no Brasil, assuma títulos e
características de 'rainha do mar', na África, é cultuada na região de
Abeokutá, na Nigéria, onde seus cultos se estabeleceram inicialmente nas águas
doces do rio Yemoja, entre Ifé e Ibadan", contextualiza o sacerdote de
umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na PUC-SP.
Ou seja: para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Essa
transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora quando, já nos
chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus
filhos".
Dias explica que por ser "orixá das cabeças", ela
"concede saúde mental" e "propõe harmonia entre o sentimento e a
razão".
"Esta orixá traduz o símbolo feminino das mulheres dos seios
fartos, é capaz de alimentar todo o mundo. É a orixá que nutre, que alimenta,
gerando abundância e prosperidade às suas filhas e seus filhos", completa.
Eugênio ressalta que todo orixá tem seus arquétipos mas o que
sintetiza Iemanjá é o da "grande mãe".
"Todos somos filhos de Iemanjá, ela é a grande mãe do mundo, a
representação das águas que, pelos oceanos, unem todos os continentes",
argumenta ele.
"Ela traz também essa noção fundamental de
ancestralidade."
"A mensagem de Iemanjá para a humanidade é de união, de
respeito, de igualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos
irmãos", resume o babalorixá.
"Na festa de Iemanjá estão todos, não só os adeptos do
candomblé. São pessoas de várias origens, várias crenças e ela abençoa a todos
sem nenhuma distinção."
No Brasil
Os estudiosos ouvidos pela reportagem acreditam que a divindade
ganhou importância no Brasil justamente por conta do processo de escravização.
Por ter ela esse papel materno e, consequentemente, fazer de todo
uma só família, ela foi fundamental para refazer os laços dos escravos
separados de seus parentes durante o processo de migração violenta e forçada.
"Em torno dela as famílias se organizam", diz Eugênio.
"Para as religiões de matriz africana, ela foi a possibilidade
de refazer, reinventar a família, que no processo de escravização havia sido
esfacelada. Em termos simbólicos, Iemanjá representou o compromisso de recriar
a família, promover a união na diáspora."
Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro
Urubatão da Guia, em São Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, no Brasil
o culto a Iemanjá foi a resposta "ao rompimento dos laços familiares e
afetivos" causados pelo regime escravocrata.
"Com o sequestro das famílias africanas, há episódios de mortes
de familiares ainda nos navios negreiros e a separação deles no desembarque,
quando eram encaminhados para locais diferentes de trabalho", pontua.
"Ser filho ou filha de orixá era uma forma de estarem ligados à
sua origem ancestral, uma forma de recapitular o passado, reestruturar os
laços."
No Brasil, a devoção a ela "extrapola as religiões de matriz
africana", ressalta Eugênio.
"Todos os brasileiros de um jeito ou de outro são devotos dela.
Ela é a grande mãe do povo brasileiro, faz parte do imaginário. Está
profundamente arraigada em nossa formação."
"Há quem diga que Iemanjá é uma santa católica, muita gente
confunde e acha isso. Isso é um traço de aculturação que faz parte da formação
do povo brasileiro. Vamos juntando elementos", prossegue Eugênio.
Representação
"Ela é uma senhora de ancas largas, que pariu toda a humanidade
e todos os orixás. Com seus seios fartos amamentou toda a humanidade", diz
Eugênio.
"Dizem que os rios são como o leite de Iemanjá escorrendo em
direção ao oceano. Se temos uma mãe em comum também temos elos, os mesmos
direitos."
Na questão da representação reside o principal problema da maneira
como Iemanjá acabou sendo incorporada ao imaginário brasileiro.
Porque, originalmente uma divindade africana, é natural que suas
primeiras e originais representações fossem de uma mãe negra.
E seu embranquecimento é visto, por estudiosos atuais, como
resultado de uma construção racista do século 20, que buscou tornar suas
feições mais "europeias".
Nesse sentido, uma violência cultural.
"A figura de Iemanjá que está no imaginário coletivo é aquela
imagem da mulher branca de cabelos longos com sua túnica azul, se confundindo
um pouco com as águas do mar", pontua Eugênio.
"Foi um processo de aculturação que levou à difusão dessa
imagem. Tem a ver com sincretismo, com a aculturação.
Para o babalorixá, "isso tem de ser respeitado".
"Povos diferentes, quando convivem, ou eles sincretizam ou eles se matam. Então é importante respeitar, embora essas coisas tenham sido impostas: um povo é submetido à violência de abarcar uma outra cultura e então acaba assimilando essa cultura".
Outros pesquisadores do assunto têm uma postura mais crítica frente
a essa transformação.
Watanabe ressalta que a ideia de sincretismo "apaga os
processos históricos que deram origem a esse amálgama de divindades."
Mas reconhece que o sincretismo existe inclusive com tradições
indígenas.
"Muitas vezes Iemanjá é confundida com Janaína, que seria a
divindade da cultura dos povos originários do Brasil, uma sereia",
exemplifica.
Evidentemente que o processo mais dominador e muitas vezes violento
dessa mistura se deu mediante o choque desigual com a religiosidade trazida
pelos europeus.
"Entender que o processo violento de sincretismo foi útil para
que muita sabedorias ancestrais vindas na diáspora sobrevivessem até hoje é
fundamental", afirma Santos.
"Mas é fundamental também entender que, diante de tantos outros
processos de mudança, nós, sobretudo mais novos, não precisamos do sincretismos
como os nossos mais velhos precisaram num outro tempo para dar continuidade ao
culto."
Durante o período da escravidão, para conseguirem manter seus
cultos, era comum que os africanos e seus descendentes precisassem recorrer a
figuras do catolicismo.
"Eles eram proibidos por seus senhores brancos e também pelos
religiosos católicos de manterem suas crenças e então uma forma que encontraram
para continuar foi disfarçando suas divindades de santos católicos",
contextualiza a jornalista Bell Kranz, autora do livro 21 Nossas Senhoras que
Inspiram o Brasil.
Em suas pesquisas ela encontrou associações de Iemanjá com diversas
denominações de Nossa Senhora.
"Especialmente Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos
Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora
das Candeias", pontua ela.
Não é por coincidência, aliás, que o 2 de fevereiro é tanto dia de
Iemanjá como de Nossa Senhora das Candeias — também chamada de Nossa Senhora da
Luz.
O arquétipo semelhante também ajudou nessa situação. Para os
cristãos, afinal, a figura de Nossa Senhora é a mãe de Jesus.
Especialmente para os católicos, ela também é reconhecida como mãe
da humanidade, mãe de todos, senhora da família.
E se você já usou branco numa festa de Revéillon, conscientemente ou
não, também participou desse processo de sincretismo.
Esse fenômeno cultural está intimamente ligado ao trabalho realizado
para popularizar a Iemanjá em terras brasileiras, realizado pelo pai de santo
Tancredo da Silva Pinto (1904-1979), o Tata Tancredo, no Rio de Janeiro.
"Conhecido como o 'papa da umbanda', ele foi quem criou a
cultura de celebrar Iemanjá no último dia do ano, quando reunia milhões de
religiosos, inspirando brasileiros, independentemente de crença ou religião, a
vestirem roupas brancas mesmo sem conhecer o motivo", conta Dias.
"Muitos vestem branco na virada do ano pensando que é para
pedir paz, muitos vão até a praia jogar rosas brancas… São rituais macumbeiros,
e muitos que têm um pezinho na igreja evangélica ou no catolicismo estão lá
realizando esse tipo de ritual. Tudo isso vem da popularização das
macumbas", comenta Watanabe.
"Com o processo de sincretismo e apagamento dos cultos de
matriz africana no Brasil, os orixás, sobretudo Yemoja, que acabou por ficar
muito popular no país, sofreram alterações e processos simbióticos com as
características dos santos católicos", complementa a psicóloga Santos.
"Mas vale lembrar que orixá não é santo e que Yeoja não é Nossa
Senhora."
Branqueamento de Iemanjá
Há alguns registros que demonstram uma europeização das
características de Iemanjá já no século 19, muitas vezes a aproximando de
representações de Nossa Senhora.
Mas a imagem que acabou se sobrepondo às outras representações e
dominando o inconsciente coletivo remonta aos anos 1950.
Conforme explica o sacerdote umbandista e pesquisador Dias, tudo
começou quando uma carioca chamada Dalla Paes Leme afirmou ter tido uma visão
de Iemanjá e encomendou a pintura de um quadro com essa representação.
"Curiosamente e, em pouco tempo, criam-se movimentos de
promoção do quadro da nova imagem, além de selos postais, eventos, romarias
resultantes de um movimento chamado pelo jornal 'Luta Democrática' de
'yemanjismo'", relata Dias.
O pesquisador lembra que ela era "uma aristocrata e
publicitária" e acabou fomentando uma tradução de "estética branca
para a divindade por meio de uma peregrinação" do quadro aos terreiros de
umbanda da época.
Segundo Dias, essa tradicional imagem "pode ser considerada o
marco do embranquecimento e aculturação da orixá".
"Não por acaso, a fisionomia da 'nova Iemanjá' se dá mediante à
sequela que o fenômeno do sincretismo deixa enquanto processo de apagamento e
conversão cultural", prossegue.
"A orixá, traduzida pela estética cristã, traz agora o mesmo
estereótipo das virgens santas, perdendo completamente seus traços africanos. A
partir de então, exclui-se os grandes seios que alimentam o mundo, cobre-se seu
corpo, retiram-se as noções daquela que é mãe dos filhos peixes em detrimento
da santa virgem que jamais dançou ao toque dos atabaques de umbanda",
comenta o sacerdote.
Para Watanabe, a Iemanjá representada como "a tal da moça
branca com vestido azul" é um legado de grupos umbandistas conhecidos como
"umbanda branca".
"É das imagens que mais circulam, muitos têm uma dessas em suas
casas", reconhece.
"Acredito que se trate de uma tentativa descarada de
apropriação de uma divindade africana e apagamento de toda uma história e de
uma cultura que são negras", argumenta Watanabe.
"Criticamos muito essa imagem. Todos os orixás são negros
porque têm uma cultura de origem, um território de origem e esse território é a
região de língua iorubá, em grande parte sintetizado na atual Nigéria."
Ele afirma que muitos apregoam que "orixá não tem cor porque é
energia".
"Mas isso é uma disforia criada a partir dessas umbandas que
foram invadidas por conhecimentos alienígenas, estranhos a elas. Esses
esoterismos, essa tentativa da umbanda de se vincular a narrativa do mito da
democracia racial, essa tomada da umbanda pelos grupos brancos que corroboram
para o embranquecimento da mesma, isso tudo deu origem a essa imagem de Iemanjá
branca", defende.
Watanabe define o fenômeno como uma "violência aos povos
negros, a cultura negra".
"A imagem deve ser substituída, de fato. Não pode seguir circulando da forma como circula. Simbolicamente é um aviltamento da cultura negra", critica.
Santos concorda e ressalta que a "descaracterização e o
esvaziamento racista" feito com a orixá é um problema.
"Essa Yemoja branca, com cabelos lisos, longos, magra,
recatada, mansa e do lar que é, na verdade, uma imagem europeia cristã, não dá
conta de quem Yemoja é e de quem ela pode vir a ser, porque Yemoja é isso:
possibilidade", diz.
Dias acrescenta que o "processo de sincretismos" sempre é
visto "como um fenômeno de dominação".
"Independente das relações e das trocas por ele produzidas,
sempre haverá uma cultura de dominação sobreposta a uma cultura dominante. A
invenção da imagem de Iemanjá traduz um Brasil que vivemos hoje em que, feito
as redes sociais, adiciona filtros para tornar as imagens 'mais aceitas e
palatáveis' pela sociedade que teima em manter o seu pseudo-status antirracista",
argumenta ele.
"Todavia, há algo de curioso em tudo isso: não se encontram
traduções de divindades de outras culturas tão facilmente quanto as africanas.
Nunca se viu uma imagem de Sidarta Gautama, o Buda, enquanto um homem negro, de
dreadlocks e brincos nas orelhas. Não se colocam mantos e retiram-se as
insígnias hindus de Shiva. Por outro lado, quando se questiona a identidade tão
quanto a cor da pele de Cristo, o clero se levanta em defesa de uma tradição
inventada para apagar a existência de um povo."
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