Reportagem Rita de Podestá
Fotos André Dib
O Vale do Jequitinhonha possui um desenvolvimento humano —
histórico e até cultural — imensurável em gráficos e em
palavras. Um exemplo é a produção magnífico artesanato
que ganha vida em personagens e em objetos de decoração. Os trabalhos com barro
que criam as cerâmicas tão características do Vale têm origem no trabalho das
mulheres. As bonecas são as mais famosas peças das artesãs — personalidades
donas de emocionantes histórias de vida, marcadas pela superação por meio do
trabalho e do talento.
Quando se fala sobre a riqueza de uma determinada região, a princípio
pensa-se em números e estatísticas. O que muitos questionam é que indicadores
de desenvolvimento como o PIB (Produto Interno Bruto) e índices de taxa de
crescimento desconsideram fatores sociais e ambientais que são ocultados por
indicadores monetários. O resultado é a representação de um país, estado ou
região por sua produção material, ignorando riquezas humanas.
A discussão sobre o tema existe e tem sido contornada. Desde a criação, em
1990, dos primeiros Indicadores de Desenvolvimento Humano (IDH), instituições
internacionais, empresas e ONGs, buscam uma maneira de compensar, ou completar,
os indicadores monetários por sociais, ambientais, até mesmo éticos. O IDH foi
criado com a intenção de abordar o desenvolvimento humano. O índice considera
longevidade (saúde), renda e educação. Todos itens de enorme importância,
entretanto, ainda assim, deixam passar despercebidos comunidades que
contornaram seus problemas com criatividade e muito trabalho.
Se o plano de destaque for menor, as desconsiderações desse tipo de
riqueza são ainda maiores. É o caso do Vale do Jequitinhonha, no nordeste de
Minas Gerais. Uma mesorregião de cerca de 62,9 mil km², na qual vivem 977,8 mil
pessoas — de acordo com o último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) — com um PIB total que corresponde a menos de
2,0% do PIB estadual.
O que não se sabe por meio destes dados é que o Vale possui um
desenvolvimento humano — histórico e cultural — imensurável em gráficos e em
até palavras. Discursos que enfatizam a condição de dificuldades da região
desconsideram outras formas de interpretá-la como as possibilidades de leitura
que passam exclusivamente pela cultura popular. Cultura que gera renda e
desenvolvimento humano, para quem é do Vale e para quem visita a região.
LUTA E CONQUISTA
A mesorregião do Vale pode ser recortada em três partes. Alto
Jequitinhonha, que corresponde à região de Diamantina; Médio Jequitinhonha, que
representa à região de Araçuaí; e Baixo Jequitinhonha, a região de Almenara,
próxima a Bahia.
O Alto do Jequitinhonha foi um dia terra rica em ouro e diamantes que
chamou a atenção dos Bandeirantes. A primeira descoberta de ouro foi no final
do século XVII, na cidade do Serro. Com isso, nas regiões próximas a
cidade histórica de Diamantina, foram instalados os primeiros núcleos de
mineiros. Hoje é a região mais rica do Vale e apresenta melhores indicadores
humanos e econômicos, além de intenso turismo.
Já o médio e baixo Jequitinhonha era coberto por floresta Atlântica e
povoado por tribos indígenas. Nos primeiros anos do século XVII iniciou-se ali
uma busca de terras propícias às pastagens. Numa disputa entre mão armada e
flechas, os vaqueiros derrubaram a floresta. No lugar surgiu o capim colonião.
O que restou é um solo velho, cansado e surrado pelo pisar dos animais,
queimadas e estiagens.
Dessas lutas nasceram várias conquistas impulsionadas por lutas
individuais de um povo, muitas vezes, sofrido. Hoje, o Vale do Jequitinhonha
pode ser entendido como uma rica zona cultural, devido às suas diversas
manifestações: folclore, conjuntos arquitetônicos e históricos e a produção
artesanal, em palha, bambu, madeira, algodão e cerâmica. Sendo esta última, a
mais representativa e reconhecida. O artesanato de cerâmica pode ser encontrado
em museus, exposições, centros culturais, assim como em lojas especializadas em
arte popular.
Algo que não aconteceu de maneira fácil, mas devido a perseverança e
coragem de verdadeiras guerreiras de mãos fortes e corações gigantes. As
mulheres do Jequitinhonha.
VIÚVAS DE MARIDO-VIVO
Os trabalhos com barro que criam as cerâmicas tão características do Vale,
têm origem no trabalho das mulheres chamadas popularmente de Viúvas de
Marido-vivo ou Viúvas da Seca. Devido à seca e dificuldades de encontrar
trabalho, os homens da região foram sempre obrigados a deixar as famílias para
trabalhar em outras cidades, principalmente São Paulo. Com isso, restava às
esposas ficar em casa com os filhos e ir atrás de fontes de renda. A solução
estava no único recurso abundante dali. A fonte veio da terra seca. As mulheres
encontraram no barro a matéria-prima de vasilhas, panelas e potes e futuramente
bonecas, animais e objetos de decoração. Foi assim que “da terra seca onde não
nasce nem um pau de flor, começaram a brotar bonecas de barro”, como diz sabiamente
o dito popular. Um conhecimento que atravessou gerações, transmitido de mãe
para filha e as vezes até filho.
No início os produtos fabricados eram utilitários, e muitas vezes nem eram
vendidos, mas trocados em feiras por alimentos. O caminho era árduo. Mães e
filhas peregrinavam de madrugada com as peças, a pé ou de burro, para pegar o
caminhão que as levaria à cidade de Capelinha. A artesã Anísia se lembra bem.
“A gente levava na carroceria do caminhão. Arrumava nos balaios, levava as
vezes na cabeça lá de Campo Alegre até no asfalto, pra pegar o caminhão. O
caminhão passava lá de madrugada.” Anísia Lima de Souza mora Comunidade Campo
do Buriti, a 10 quilômetros de
Turmalina. Tem três filhos e seu marido trabalha numa mineradora em Conceição
do Mato Dentro.
Essa rotina era feita aos sábados. Mal retornavam o trabalho já começava.
Quando tudo acabava, já era outro dia de feira. “Segunda tirava o barro, socava
amassava, tinha que produzir tudo na semana. Sexta queimava. Tirava de
madrugada mesmo, embalava com capim, folha de banana. Aí punha nesse saco de
fibra, punha na cabeça e ia embora. Chegava em capelinha e trocava as coisas:
feijão café, verdura. Chegava em casa tinha que arrumar a casa. Domingo as
vezes a gente saía, passeava. Ia no forró. Mas segunda, seis horas da manhã,
tudo de novo.” Quem conta é Deuzani Gomes dos Santos, artesã também moradora da
Comunidade Campo do Buriti.
Deuzani e Anísia são muito mais do que duas artesãs: representam uma
história de superação e humildade. Hoje, não relutam ao dizer como os
tempos mudaram — para melhor. Mas elas têm na memória toda a sua trajetória de
vida, muitas vezes solitária, porém com a ajuda das outras viúvas, mantinham
vivas a certeza de que algo poderia ser feito.
MÃOS DE ARTESÃS QUE LEVANTAM PAREDES
Deuzani se lembra bem. Ela relata que em 1994 as artesãs se reuniram, na
maioria jovens de Campo Alegre que casaram e mudaram para comunidades próximas
à Turmalina. Eram oito, junto com Dona Rosa, já senhora e que morava na
comunidade. Todas tinham que trabalhar, mas sabiamente perceberam que sozinhas
não tinham a mesma força que unidas. O exemplo veio de Campo Alegre, onde
algumas eram já afiliadas às Associações que sobreviviam muito pela ação da
então CODEVALE (Comissão do Desenvolvimento Vale de Jequitinhonha). No final
dos anos 70, este órgão do governo — que depois foi transformada em uma
secretaria especial do Vale do Jequitinhonha — enviava pessoas com frequência
às associações para fazer alguma compra ou encomenda.
Elas começaram a se reunir onde fosse possível — na rua ou na porta da
igreja —para discutir formas de melhorar o artesanato e a renda. Em um dos
encontros, foram avistadas pelo padrinho de Deuzani que resolveu dar um lote
para as artesãs construírem a associação. Eram então oito mulheres, um sonho em
comum e um lote de 10m2. “Tínhamos o lote e a vontade de construir. Mais nada,
material nenhum, nem por onde começar. Daí, surgiu um mutirão das mulheres e
limpamos o lote.” No início a ajuda era escassa, mas aos poucos os homens
ajudaram, inclusive a prefeitura, com material e transporte. O trabalho pesado
ficou mesmo por conta das mãos femininas. “Levantamos paredes, alguns zombavam
da gente, outros passavam e nos animavam e davam dicas pra nós”. Tudo era
improvisado, menos a determinação.
“CAÇAR BARRO”
Hoje são mais de 40 artesãs. Deuzani saiu da associação, pois agora pode
trabalhar sozinha. “Valeu o esforço, aprendi muito. Foi muito sofrido. As
humilhações de ter que pedir as coisas e ouvir muitas negativas. Com cada coisa
aprendi um pouco. Até como deixar os meus filhos para poder cuidar do trabalho.
Pra mim a associação é um aprendizado. Aprendi a conviver.”
Dona Rosa é a mais velha. Ao ser perguntada sobre como tudo começou, diz
que o caso é muito grande. “Eu comecei comigo mesma, não foi ninguém que me
ensinou. Fui caçar barro, moldei umas dez panelas sem ninguém me ensinar e pus
pra secar e queimar. Daí, eu vendi algumas por um mil e quinhentos réis.” Hoje
com quase 90 anos, Dona Rosa não pensa em parar. “A cerâmica é um divertimento.
Eu vivo sozinha aqui, tem dia que a cabeça tá ruim, aí eu pego uma panela de
barro pra fazer.”

Junto com elas, várias outras mulheres são protagonistas. Irene, Zezinha,
Luisa, Tereza, Faustina, Zefinha, Aúrea, Rita. Cada uma atua como pode.
Faustina é líder comunitária, sempre preocupada com tudo e todos. Ela é
responsável pela divisão das contas de água e luz dos moradores e pela
coordenação da Associação de Moradores do Campo Buriti e Coqueiro Campo. Já
Zezinha — Maria José Gomes
da Silva — foi selecionada para a exposição de Mulheres Artesãs da ONU em
Nova Iorque. Parece até que ela não sabe o quão perfeito
já é seu trabalho. “Eu sempre acho que posso melhorar. Ah, eu queria uma boneca
bonita demais, um vestido bonito demais”, afirma.
TURISMO SOLIDÁRIO
Todos esses esforços foram aos poucos chamando a atenção. Em 2005, o
Governo de Minas criou o Turismo Solidário, um programa elaborado para realizar
a ordenação turística de localidades que possuem rico patrimônio natural e
cultural, porém baixos índices de desenvolvimento humano. A iniciativa
qualificou vários moradores de algumas cidades do Norte do estado e do Vale do
Jequitinhonha.
Enquanto isso, outras iniciativas surgiram de olho no desenvolvimento das
riquezas culturais do Vale — e uma delas merece atenção especial: o projeto
Raízes. Inaugurado em 2006 como Raízes Turismo e Desenvolvimento Local, tinha o
propósito de unir o desejo das turismólogas Mariana Madureira e Marianne Costa
de desmistificar que o turismo deve ser uma atividade meramente
econômica. Em 2009, criaram o Raízes Artesanato, de comercialização de
artesanato solidário do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas. Até que em 2012
ampliaram e criaram a Raízes Desenvolvimento Sustentável, um negócio social de
desenvolvimento local que utiliza o turismo, artesanato e associativismo para
promover experiências e enriquecimento cultural às pessoas, além de fomentar soluções
sustentáveis de desenvolvimento local.
“Mariana e Marianne são duas meninas muito inquietas, muito vivas, que
pensam sempre em como podemos transformar o mundo, mudar as coisas e como o
turismo pode fazer diferença na vida das pessoas.” O depoimento é de Jussara
Rocha, historiadora, hoje também sócia da empresa.
No início, a iniciativa consistia na tarefa de trazer, expor e vender o
trabalho das artesãs. Mas certamente o convívio com as mulheres e a vida do
Vale instigou as inquietas empresárias de que era possível e preciso fazer
mais. Os valores das obras comercializadas não estavam apenas na beleza do
objeto. O verdadeiro valor estava na história, na simpatia, na humildade de
quem o produziu. “A gente valoriza o artesanato, porém fazemos as pessoas entenderem
que o Vale do Jequitinhonha é a vida dessas pessoas. E mais: isso desmitifica o
Vale como uma terra da pobreza. É um vale da riqueza das pessoas. As pessoas
ali transformaram suas vidas com histórias incríveis”, argumenta Jussara.
DIÁLOGO E DESENVOLVIMENTO
A Raízes criou um diálogo com a comunidade para formatar um roteiro de
base comunitária com as artesãs. No início, ensinaram as mulheres sobre a
cadeia produtiva e sobre os preços — uma qualificação empreendedora. Hoje
realizam consultoria, trabalhos de voluntariados, viagens solidárias e viagens
de experiências. Essa última consiste numa viagem de seis dias para o Vale, nas
regiões de Minas Novas e Turmalina. Inclui hospedagem e alimentação na casa das
artesãs e uma oficina de cerâmica que engloba todo o processo de produção. A
viagem conta com a consultoria da curadora de arte Maria Sônia Madureira de
Pinho, pós-graduada em Gestão do Patrimônio e que já trabalhou com o mesmo
grupo de artesãs.
Longe de ser um roteiro turístico engessado, a viagem torna-se uma
experiência surpreendente. É uma imersão no mundo dessas guerreiras que recebem
com um sorriso no rosto e uma vontade de compartilhar, de ensinar. A Raízes faz
questão de que participem o maior número possível de mulheres: algumas dão oficinas,
outras fazem almoços fartos e deliciosos, outras abrem suas casas para uma boa
prosa.
“A gente faz a trilha, bate o barro, quebra o barro, soca, amassa, molda,
cria o produto, espera secar, pinta, queima. Tudo em seis dias. Em cada casa
elas contam uma história, e quando você vê todos parecem amigos de longa data.
É muito bonito. Só vivendo. É difícil formatar um roteiro e colocar na
prateleira,” explica Jussara.
Já as viagens solidárias são realizadas de acordo com demandas da região.
A mais recente ação realizada foi a criação de uma biblioteca comunitária para
as crianças. Foram doados mais de mil livros, que já estavam nas mãos de jovens
e crianças antes mesmo da comunidade terminar de construir o local da nova
biblioteca.
PERSONAGENS E PROTAGONISTAS
“O barro ensina as pessoas que tem boas ideias. Quando o barro é ruim não
dá liga. Quando a ideia é ruim não dá liga também. ” É o que diz a sábia Dona
Rosa. As ideias se aprimoraram. De potes e panelas, o artesanato ganhou vida em
personagens e em objetos de decoração. As bonecas são, sem dúvida, as mais
famosas das peças das artesãs. Casais, moças e mães amamentando seus filhos.
Segundo Joubert Cândido, coordenador da galeria do Sesc MG em
Belo Horizonte, a ideia das bonecas surgiu por causa do
formato das tampas de bilha — vaso de barro com gargalo curto e estreito. Mas
cada objeto é de um jeito. Cada artista tem características próprias. Há quem
diz que as bonecas levam traços da criadora.
“O jeito de fazer a cerâmica mudou muito. O acabamento, as peças.
Hoje, quase não se faz as peças que a gente fazia. O pessoal comprava pra usar
mesmo. Agora, o pessoal usa muito peça industrializada e compra pra decorar”,
coloca Deuzani. A artesã emociona quem escuta sua trajetória de vida. Ela conta
que no dia em que nasceu, sua madrinha e parteira a levou para o lado de fora,
já que na casa não havia luz. “Ela me pegou pra ver se eu era normal, pois
estava escuro. Ela me disse que a primeira coisa que eu fiz foi abrir os olhos
e olhar a lua. Eu sou apaixonada com a lua até hoje”. Deuzani teve uma vida
difícil devido às dificuldades da região, mas nunca deixou de enxergar poesia
onde pudesse.
Quando adolescente, sua principal companhia, muitas vezes, era o caderno
no qual escrevia e depois desmanchava tudo para poder escrever mais. Agora, é
uma artesã do barro e das palavras. Jussara relata que em uma das viagens ao
Vale, teve o prazer de ler seus pequenos poemas. “A Deuzani é poeta. Um dia,
ela se sentou comigo na casa dela. Eu perguntei o que ela mais gosta de fazer e
ela me disse que o que mais gosta de fazer na vida é escrever. Ela me mostrou o
que escreve — nunca havia mostrado para ninguém. Eu lia e chorava. Ela tem até
a quarta série. É uma pessoa iluminada. O sonho dela é publicar um
livro.”
Fácil é se emocionar tantas histórias. Jussara diz, enfática, que ali
estão “mulheres fortes e unidas para buscar soluções para melhorar a vida”.
O jeito é viver e ver de perto. Sentir o barro, pisar na terra seca e
moldar com as artesãs uma nova forma de pensar sobre o Vale e suas verdadeiras
riquezas.
Fonte:
http://revistasagarana.com.br/artesas-do-vale-do-jequitinhonha/