Museu do Oratório, em Outro Preto/MG A pedra natural, enquanto material
imediato e acessível, utilizada em objetos e construções, tem acompanhado o
homem desde o período pré-histórico e, em sua perenidade, vem registrando a
trajetória das civilizações. Inicialmente empregada na forma bruta, foi sendo,
ao longo do tempo, dominada e transformada em delicado e profuso ornato.
Cantaria é a pedra que, tendo sido
afeiçoada manualmente, com o uso de ferramentas adequadas, apresenta-se pronta
para ser utilizada em construções e equipamentos. Atua ora como elemento
estrutural, ora como ornamentação e, muitas vezes, atende às duas funções.
Presente em toda a sucessão de
estilos da arquitetura ocidental, a técnica da cantaria chegou ao Brasil em
meados do século XVI. Escolhido por Dom João III para ser o primeiro governador
geral da colônia, Tomé de Souza trouxe, em 1549, Luís Dias, chamado mestre de
pedraria. No período de colonização era comum os projetos virem já prontos de
Portugal para serem aqui realizados, e o mesmo sucedia com a cantaria, principalmente
as peças em calcário Lioz, que confeccionadas na metrópole, vinham como lastro
dos navios e então utilizadas nas construções.
Durante a segunda metade do século
XVI e pelos dois séculos seguintes, a pedra de cantaria foi amplamente
empregada nas construções civis, militares e religiosas brasileiras. A
arquitetura aqui realizada recebia grande influência dos modelos europeus,
transpostos através de projetos, mestres construtores, materiais e das chamadas
“Ordenações Reais”, que estabeleciam regras para as construções. Neste
contexto, as pedras locais e também aquelas trazidas de Portugal eram um
recurso essencial, tanto quanto, o trabalho dos mestres canteiros.
A descoberta do ouro na Capitania
das Minas Gerais, em 1698, atraiu rapidamente para a região de Vila Rica,
paulistas, portugueses e gente de diversas partes do Brasil. No início da
ocupação, dificuldades de ordem material e técnica impediram a imediata
reprodução dos modelos culturais portugueses, inclusive arquitetônicos, como
ocorrera na região nordeste.
As construções de pedra
argamassada ou seca – pedra sobre pedra, sem uso de argamassa – surgiram
devagar. Nesta fase inicial foram usados, para alvenarias, blocos avulsos de
canga, nome dado ao minério de ferro. Estas alvenarias, depois de erguidas,
eram revestidas. As peças de canga, quando entalhadas, apresentavam acabamento
rústico devido à granulação grossa da rocha.
Em seguida, viriam os quartzitos
ser amplamente empregados em Vila Rica, sobretudo nas partes nobres das
construções. A cantaria em quartzito Itacolomi, aparente, com acabamento
refinado e união das peças feita por encaixes ou argamassa foi introduzida na
arquitetura local para as obras do Palácio dos Governadores pelo engenheiro
militar português José Fernandes Pinto de Alpoim entre os anos de 1735 e 1738.
A terceira fase do uso das rochas
nas construções da vila teve início por volta de 1755 com o emprego do
esteatito, conhecido como pedra-sabão. As ornamentações encontraram a desejável
maleabilidade nesta pedra talcosa comum na região. Com ela, o Aleijadinho criou
seus frontões, portadas e esculturas.
Durante o século XVIII, o
trabalho conjunto de mestres portugueses e a primeira geração de artistas
mineiros, o emprego dos materiais pétreos locais e o aperfeiçoamento da arte de
construir deram origem às obras de tipologias diversas que caracterizaram definitivamente
a arquitetura colonial de Ouro Preto.
As alvenarias, que levam canga na
alma, revestidas com a mais branca cal, fazem fundo para o quartzito rosa dos
embasamentos, cunhais e cimalhas que delineiam fachadas e enquadram ornatos de
pedra sabão em uma harmonia cromática ímpar, formando a mais pura expressão do
barroco mineiro.
A vinda da corte de D. João VI e a
chegada da missão francesa, no início século XIX, foram decisivos para o
declínio da cantaria. A adoção do estilo neoclássico, o emprego de novos
materiais, a preferência pelos tijolos na execução das alvenarias e o fim do
trabalho escravo levaram o ofício às vias de extinção. Conseqüentemente,
perdeu-se a mão-de-obra especializada em trabalhar a pedra, material agora
restrito à pavimentação das ruas, pisos, degraus de escadas e revestimento de
paredes, em forma de placas.
A possibilidade de preservação da
técnica surgiu recentemente com a criação da Oficina de Cantaria da
Universidade Federal de Ouro Preto, iniciativa do Departamento de Mineração da
Escola de Minas. Responsável pela oficina, Sr. José Raimundo Pereira, “seu
Juca”, trabalha com a cantaria há vinte anos. Autodidata, mestre Juca, hoje com
80 anos, vem se aperfeiçoando cada vez mais e, ao transmitir seus conhecimentos
aos alunos da oficina, tem promovido o renascimento do ofício.
Na Oficina de Cantaria as pedras,
em geral de quartzito Itacolomi, perdem seu aspecto bruto ao serem entalhadas e
afeiçoadas por “seu Juca” e seus alunos. Com técnica e habilidade, vão surgindo
os relevos e contornos das futuras peças de ornamentação.
Projeto semelhante, que traz ânimo
aos profissionais envolvidos com esta arte, surgiu em Portugal há onze anos. Em
1992, foi criada a Escola Nacional de Artes e Ofícios Tradicionais da Batalha,
a ENAOTB. Em tempos áureos, a Batalha foi o principal centro de cantaria de
Portugal. Porém, ao limiar do século XX, a cantaria estava quase extinta e, por
ocasião da fundação da ENAOTB, existia apenas um único mestre canteiro em
Portugal, Alfredo Ribeiro.
Pertencente a uma família que já
conta com cinco gerações de canteiros, mestre Alfredo Ribeiro praticamente já
não exercia o seu ofício. Ele se tornou peça fundamental para concretizar o
objetivo primeiro daquela instituição: transmitir às novas gerações os segredos
de uma arte de tão difundida na arquitetura portuguesa.
Graças às atividades da Oficina de
Cantaria de Ouro Preto, a pedra entalhada tem reconquistado seu espaço ao
ornamentar ambientes contemporâneos. O empenho de mestre Juca alcança mérito
ainda maior por abrir novos horizontes de trabalho à população local.
A manutenção da técnica, além da
questão de preservação de uma técnica tradicional em si, é imprescindível para
os trabalhos de restauração dos monumentos. As peças de cantaria dos prédios
históricos vêm sendo avariadas desde que construídos. Sem o trabalho dos
canteiros, a substituição destas peças não é possível.
Transcorridos mais de duzentos e
sessenta anos de sua introdução nas construções de Ouro Preto, o quartzito tem
apresentado níveis diferenciados de degradação. Algumas peças de cantaria
começam a ter sua função estrutural comprometida e as que foram esculpidas, em
alguns casos, encontram-se totalmente descaracterizadas.
Agentes de origem química, física
e biológica, em ação isolada ou conjunta, são os que geralmente causam os
maiores danos às peças. Entretanto, avarias graves têm sido provocadas pelo
homem, como o acidente ocorrido com o chafariz da Igreja de Nossa Senhora do
Pilar em Ouro Preto. Em 05 de novembro de 2002, um caminhão atingiu parte do
monumento, quebrando vários de seus elementos esculpidos em pedra.
Quando ocorre a perda total ou
parcial de um elemento arquitetônico e uma substituição se faz necessária, o
primeiro passo é determinar a natureza da pedra utilizada e a localização da
jazida que forneceu o material original. Para que sejam preservadas as
características da obra, deve-se procurar uma nova pedra que atenda aos
requisitos de resistência mecânica, durabilidade e semelhança em termos de
textura e cor.
A substituição de peças
danificadas por novas, confeccionadas com material de mesma origem e usando-se
a mesma técnica escultórica, desde que devidamente datada e documentada, é
prática legítima, prevista nas cartas patrimoniais.
Deve-se ressaltar que a
substituição de materiais em uma edificação histórica é uma atuação que ocorre
em terceira instância. A primeira é detectar as causas de deterioração para
eliminá-las ou minimizá-las na medida do possível. A segunda, a consolidação, é
uma delicada intervenção que consiste em paralisar o perda do material. A
terceira, troca-se a pedra original por outra de aspecto e comportamento
adequado, pretendendo elevar a durabilidade do conjunto, conservando ao máximo
o material original.
Não existem dados precisos, mas
pode-se estimar que, em Ouro Preto, a cada ano pelo menos um bem é destruído,
avariado ou necessita de reparos. A solução mais imediata e cômoda, geralmente
apontada, é a confecção de peças em cimento.
Sem o trabalho dos canteiros, em
um futuro próximo teríamos nossa arte barroca substituída por inexpressivos
blocos de concreto. O quê nos restaria a apreciar nestas superfícies cinzentas
e lisas moldadas por formas?
Nenhuma intervenção que tenha por
finalidade salvaguardar as condições físicas de um monumento poderá ser considerada
como trabalho de restauração se não proporcionar ao observador a fruição plena
e legítima, que permita a leitura da mensagem histórica.
Texto extraído de: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.041/646