Em Arraial do Curral Del Rei – A desmemória dos bois, 34º título da coleção BH. A cidade de cada um, da Conceito Editorial, Adriane Garcia aborda o encantamento com a linda cidade que nasce e, ao mesmo tempo, que se choca com o desencantamento da promessa não cumprida dos benefícios do progresso. Excludente, este chega para poucos. "O projeto de Aarão Reis se constrói como se aqui fosse tábula rasa. É violento, não considera aqueles que viviam no local, dispensa o registro de sua memória. Trata-se da planta de uma cidade ideal, desenhada, e não só os habitantes, mas também a natureza, os rios, as paisagens, vão ter de se submeter", afirma Adriane Garcia, escritora e historiadora.
Eram excelentes
as condições oferecidas pelo Arraial do Curral del Rei para
que ali fosse implantada a primeira cidade planejada da República: o lugar registrado
nos livros de história para a fundação de Belo Horizonte estimula a
imaginação do idílico. Agradável era o clima; cortadas por rios e córregos,
belas eram as paisagens entre as serras do Curral e de Contagem, da Piedade e
Vale do Paraopeba. Aqui, a 100 quilômetros da então capital, Ouro Preto, o
engenheiro Aarão Reis arrancaria de sua prancheta, inspirado no modelo das mais
modernas cidades do mundo, Paris e Wa- shington, os traçados das avenidas em
diagonal.
Era o
progresso, o triunfo republicano. "Belo Horizonte foi construída para ser
o marco zero. E isso não é verdade, pois quando foi colocada nesse lugar
existia aqui uma gente, uma história, desde o século 18. E a essa gente desse
arraial, que se chama do Curral del Rei, não é dada nenhuma escolha. São
despejados. E, obviamente, com a indenização que recebem, não conseguem
adquirir terras na nova capital. O sonhado progresso não chega para essa
população", afirma Adriane Garcia.
O arraial em 1897 tinha cerca de 2,6 mil habitantes, segundo registro do padre Francisco Martins Dias, autor da obra Descriptivos de Bello Horizonte, lançado em julho de 1897, cinco meses antes da inauguração da nova capital.
E é reconstituindo o contexto histórico da fundação da capital mineira, que Adriane Garcia tece em versos a teia de personagens ficcionais que habitavam aquele lugar, sobre os quais não restou memória. "O arraial, ao final do século 19, não era um lugar idílico. Era um lugar de muitos pretos, pardos e pobres, de divisão de classes, pessoas que se sentavam por grupos na igreja, conforme a sua posse", afirma Adriane Garcia. Ela observa que 25 anos antes da construção da capital, no censo de 1872, fica demonstrado que pretos e pardos constituíam dois terços da população local.
Sinais de resistência no Arraial
"Pelos registros históricos, a impressão que fica é que quando construíram a capital disseram para as pessoas: vocês têm de sair. E elas foram. Mas houve resistência", diz a autora, que num mosaico de fragmentos encontra inúmeras pistas. Na Revista do Arquivo Público Mineiro, por exemplo, ela pinça a história do jornalista europeu Alfredo Camarate, que, tendo procurado no arraial os serviços de um alfaiate para que lhe fizesse umas calças, dele ouviu a recusa do serviço, com a gentil indicação de outro profissional, que seria "melhor e mais barato".
Adriane afirma: "O jornalista achou que tal fôra por tacanhice. Mas eu aposto em resistência: não quis prestar o serviço àqueles que chegavam para desalojá-los". Sobre o episódio, assim escreveu Alfredo Camarate: "E fui-me cismando... na balança da minha consciência, os novos bens que trará a este povo a conquista vertiginosa dos progressos do século e as antigas virtudes patriarcais deste povo, que irão esvaindo nas fórmulas positivas e interesseiras dos povos ultracivilizados. Filósofos e moralistas dirão, uns, que Belo Horizonte ganha, outros, que Belo Horizonte perde!"
Sobre a reação dos antigos moradores do Arraial do Curral del Rei face à ameaça do despejo, de fato, não há registro. Nas entrelinhas dos textos da época, a autora garimpa histórias e as transforma em versos, ao estilo de Cecília Meireles, em Romanceiro da Inconfidência:
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