sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O velho forno de barro no fundo do quintal da memória

O porco estava em grandes pedaços na bacia, os pernis e os dianteiros, o lombo, as costelas, a cabeça. Vó veio com uma caneca de limão espremido, alho amassado e cebola picada, despejou nas carnes da bacia. Vô abriu um garrafão de vinho, virou um copo na boca, ainda suando, despejou três copos na bacia. Vó trouxe cheiro-verde e salsa, tudo picadinho, jogou também punhados de pimenta e vô esfregou forte na carne, aí afastou um passo e admirou:

- Pronto pro forno.

Antes do forno, a carne curtia a manhã toda no tempero. O forno de barro, redondo com sua portinha, era no fundo do quintal, e depois do almoço ele acendeu lá dentro uma fogueira, a lenha chiou borbulhando até virar braseiro. Então ele fechou com uma lata a boca do forno, revirou e regou a carne mais uma vez. Depois abriu, o calor saía num jato de mormaço e, de longe, com um rastelo comprido ele amontoou as brasas num lado, no outro lado enfiou as assadeiras empurrando com o cabo do rastelo.

Fechou a boca do forno com uma folha de lata, foi tomar banho, foi à padaria, foi ler jornal, foi prosear na praça, até que anoitecendo voltou e abriu o forno, puxou com o rastelo as assadeiras: todo o tempero tinha sumido, a pele estava dourada e quebradiça de tão pururuca, os ossos chiavam. Com o rastelo ele puxou para os lados do forno as brasas, vó puxou para fora as cinzas com a vassoura de guanxuma, varreu como pôde, a boca do forno ainda bafejando aquele calorão; aí deixaram o pó de cinza baixar, enfiaram os frangos em assadeiras e os pães em folhas de bananeira.

Vó recheava os pães com torresmo, lingüiça ou goiabada, de modo que saíam chiando ou borbulhando, os frangos continuavam a dourar, entravam as tortas e os bolos. Depois de tudo, quando a boca do forno já nem bafejava mais, mas com o forno ainda quente, entravam as assadeiras de suspiros. 
       
Já era hora do jantar de Natal, os tios já abriam outro garrafão, as cervejas saíam do tanque de lavar roupa coberto de gelo picado, e, quando as travessas de macarrão chegaram nas mesas, uma para gente-grande e outra para as primas e nós, todo mundo sentou e comeram falando e rindo, riam falando e comendo. Até que, de repente, vó mandou ver se os suspiros estavam cochichando. Fomos até o forno e não ouvimos nada. Continuamos ali agachados vendo a lua surgir, e logo ouvimos o chiado começando, uma multidão de cochichos crescendo, corremos avisar vó mas ela ainda deixou na mesa mais uma travessa de macarrão antes de tirar as assadeiras, os suspiros estavam dourados, o forno ia descansar até outro Natal.
 
O último porco, conto publicado na coletânea Pensão Alto Paraná,
de Domingos Pellegrini


Uma história da alimentação do Norte do Paraná passa por essas fantásticas bolotas de barro, máquinas de viajar no tempo, alta tecnologia de saberes & sabores da vida.  



Fonte:
http://doclondrina.blogspot.com.br/2012/03/o-velho-forno-de-barro-no-fundo-do.html
Fonte da Figura:
http://doclondrina.blogspot.com.br/2012/03/o-velho-forno-de-barro-no-fundo-do.html



Nenhum comentário:

Postar um comentário