Dois relatórios anteriores de pesquisas precedem este estudo e formam,
com ele, uma pequena trilogia de investigações de campo cujo propósito sempre
foi, mais do que descrever apenas um ou outro evento folclórico isolado, o de
compreender o processo ritual, a ordem de relações e a organização do sistema
simbólico, presentes nos modos como até hoje em Goiás os negros participam de
cultos de louvor aos seus santos padroeiros. Se um dia forem reunidos os três
estudos – dirigidos a rituais semelhantes em cidades diferentes – eles deverão
traduzir momentos de um mesmo projeto: a explicação de algumas modalidades e
alternativas da presença de negros nos sistemas de crenças e práticas do
catolicismo popular. Em segundo lugar, o estudo pretende retomar um assunto
antigo na literatura do folclore brasileiro, com a esperança de tratá-lo com um
outro enfoque. Tem sido costume descrever o evento folclórico isolando-o por
vezes do seu contexto mais imediato ou de sua conjuntura mais ampla, como um
ciclo religioso/folclórico de festejos do catolicismo popular. São esses os
casos em que um auto-dramático, uma dança ou um cortejo processional são
exaustivamente descritos, dos passos às vestimentas dos figurantes, sem que os
seus significados de contextualização – o religioso popular, o propriamente
folclórico e o de suas articulações sóciorituais – sejam também considerados
como objetos de estudo. No entanto, a consulta mais atenta a estudos recentes
sobre o folclore referenda a presença de uma atitude mais crítica na análise de
acontecimentos como os que estudo aqui. Ela integra o fenômeno folclórico
descrito: a) no seu sistema de rituais populares, de que é uma parte e desde
onde torna-se produtivo o seu estudo; b) na configuração das relações e
representações sociais onde se combinam e, às vezes, se enfrentam o simbólico e
o social, a festa e a rotina, os personagens do folguedo e os sujeitos do
cotidiano da sociedade promotora.
domingo, 10 de julho de 2022
A Festa do Santo de Preto - Carlos Rodrigues Brandão
Muita coisa tem sido dita e
escrita, entre simpósios, congressos, artigos e livros sobre rituais e festejos
de negros no Brasil: os seus cantos e danças, suas crenças e formas de culto,
os seus reis e rainhas, generais, capitães, embaixadores, secretários,
guerreiros e soldados. Uma gente de fé e fantasia. Este estudo assume o risco
de voltar ao assunto. Ele não foge de ser mais uma outra aventura de descrição
do que se passa nas festas populares do calendário católico e nos folguedos
religiosos em louvor dos santos de preto. Diante do perigo de reproduzir o que
já foi tantas vezes repetido, articulo algumas defesas. Em primeiro lugar, A
Festa do Santo de Preto não é um estudo isolado de uma congada ou de uma Festa
de Nossa Senhora do Rosário realizadas todo ano em Catalão, no sul do estado de
Goiás.
Em Catalão, tudo o que o turista
ou o pesquisador podem viver e presenciar, no Domingo de Nossa Senhora do
Rosário e nos seus dias próximos, vai dos desfiles, passos de dança e
“cantorias” de cada “terno de congo”, “moçambique”, “catupé” ou “vilão”, para a
Congada , da Congada para o Reinado, do Reinado para a Festa de Nossa Senhora
do Rosário e, finalmente, da própria Festa para a sociedade de Catalão: suas
instituições religiosas e sociais, os sistemas de trocas entre suas pessoas,
grupos e classes, espaços por onde se promove o trânsito do profano ao sagrado
e do simplesmente festivo para o propriamente folclórico.3 A Antropologia
Social chega á fronteira das sociedades complexas após haver se exercitado no
estudo de sociedades primitivas. Dessa trajetória resultou uma insistente
preocupação com inscrever fenômenos específicos, ou ordens muito particulares
de sistemas de relações, no interior de estruturas sociais de maior
abrangência. É desde o modo de operar da Antropologia Social que quero trazer,
para o estudo de um tipo de ritual, o cuidado de descrever com o detalhamento
necessário o evento folclórico em si mesmo e a trama de articulações sociais e
simbólicas produzidas pelas diferentes categorias de sujeitos envolvidos entre
a Festa, a dança e a assistência. As descrições e análises dos sete capítulos
de A Festa do Santo de Preto começam e terminam dentro dos limites de Catalão,
em Goiás. É preciso explicar ao leitor o que é a Festa de Nossa Senhora do
Rosário, no mês de outubro, em Catalão. É preciso também descrever com
detalhes, mesmo com os que parecem pouco importantes, como procedem ritualmente
os ternos da Congada.
Os capítulos 1 e 2 respondem pela tarefa e se somam a dois
dos anexos apresentados ao final do estudo, com o propósito de introduzir, pelo
caminho das descrições do processo ritual, as análises subseqüentes sobre a sua
ordem simbólica e social. Sob as aparências de uma alegre desordem de dançantes
de rua, é possível descobrir a ordem da Festa e da Congada, invisíveis aos
olhos apressados do turista, essenciais aos cuidados de pesquisa do
investigador. Um complexo sistema de trocas de ações de serviço envolve tipos
de participantes e modos de participação, tanto nas esferas amplas das trocas
entre os “irmãos” dançantes, os encarregados da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e outros agentes responsáveis pela Festa.
O capitulo 3 traz a leitura
da ordem da “festa do negro no mundo do branco” e procura dar conta dos modos
como, de cada terno de “brincadeiras” até os limites da própria “Irmandade”, há
um sistema de posições e relações cujo núcleo ritual está na Congada, objeto
principal do estudo. Apenas através da descoberta do código de relações entre
agentes da Igreja, agentes da Festa e agentes da Congada é possível compreender
como e porque pessoas de origem e participação social tão diversas são capazes
de se combinarem dentro da situação tão especial como a de uma “festa de
igreja”. As relações entre diversos tipos de agentes envolvidos nos cuidados de
prestar culto à Nossa Senhora do Rosário são discutidas o capítulo 5. Entre
dois capítulos de pesquisa de relações sociais dentro de situações rituais, há
um capítulo, o de número 4, dedicado a explicar quem são, na sociedade, dentro
dos seus dias de trabalho e rotina, os reis e presidentes, generais e capitães,
suplentes e soldados da Irmandade, da Congada e de cada um dos seus ternos de
congos.
No capítulo 6 são analisados momentos de relações de conflito entre
agentes da Festa. Um dos problemas com que mais se envolve a Antropologia
Social no estudo de situações de produção ritual é o das maneiras como os seus
praticantes produzem e conservam explicações próprias para criar o conhecimento
de suas origens e significados atuais; para justificar inclusive a sua própria
presença dentro do ritual ou das instituições que o envolvem.
A Congada de
Catalão possui um mito de referência. Ele é muitas vezes repetido por
diferentes categorias de pessoas da cidade e da Festa, sejam elas brancas ou
negras. O mesmo mito de origem da Congada eu o escutei em outras cidades de
Goiás e do estado de Minas Gerais. Ao lado de seu mito, piedosamente acreditado
como a verdade dos motivos das crenças e das danças dos negros em louvor à
Senhora do Rosário, tanto a Festa como as razões de participação pessoal em
alguma de suas partes são justificadas por crenças e acontecimentos pessoais e
coletivos passados entre os devotos e a padroeira.
Qualquer “brincador” de um
terno de congos sabe articular com facilidade uma trama simbólica de santos e
devotos, de votos e promessas, de milagres e formas de reconhecimento. Na maior
parte das vezes, elas são a origem dos motivos pelos quais um devoto de Nossa
Senhora do Rosário vem a se tornar um de seus “brincadores” na Congada. O
estudo do mito e a análise da ideologia do contrato entre o devoto e Nossa
Senhora do Rosário são o que estudo no capítulo final. Nos três anexos há
apenas algumas informações complementares.
O leitor, a quem interessa, ao lado
da análise, a presença de descrições e partituras, não se incomodará por certo
com o número de vezes em que será convidado a viajar até um dos anexos. O anexo
A completa o capítulo 2. Estão ali as letras dos cantos dos congos, algumas
indicações de sua trajetória pela cidade e da sua coreografia durante os
momentos da dança. O anexo B reúne partes de entrevistas onde os próprios
congos falam, a seu modo, do seu ritual. O anexo C completa o capítulo 7. Estão
ali as reproduções de versões do mito de origem da Congada, tal como foram
gravados em Catalão e na cidade de Nova Veneza, também em Goiás. Durante os
dias de trabalho em Catalão, a ajuda de algumas pessoas da cidade foi muito
valiosa. Quero agradecer à família que soube hospedar, com o carinho dos
goianos, um pesquisador curioso e insistente em fazer perguntas e exigir
informações. A mesma coisa deve ser dita para as “pessoas da Festa e da
Congada” que, entre os muitos cuidados da preparação e as preocupações dos seus
três dias de maior movimento, souberam guardar ainda um pouco de seu tempo para
dar e repetir informações e confidências. Terezinha de Jesus Coelho, uma amiga
de muitos anos e hoje professora da Universidade Católica de Goiás, acompanhou
comigo três dias de andanças atrás dos ternos de congos de sua cidade natal.
Num momento do começo da noite do fim da festa, sentamos os dois numa beira de
calçada e, consultando um mapa da cidade que eu levava comigo, calculamos com
espanto que em três dias havíamos andado entre 50 e 60 quilômetros atrás dos
dançantes do congo.
Este foi o meu último escrito sobre rituais religiosos do
catolicismo popular em Goiás. A pesquisa foi feita e o relatório redigido
enquanto eu era professor da Universidade Federal de Goiás e pesquisador do seu
Museu Antropológico. Em nome do Professor Acary de Passos Oliveira, quero
agradecer aos companheiros de uma e outro.
Carlos Rodrigues Brandão Campinas,
primavera de 1981.
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