domingo, 10 de julho de 2022

A Festa do Santo de Preto - Carlos Rodrigues Brandão


Muita coisa tem sido dita e escrita, entre simpósios, congressos, artigos e livros sobre rituais e festejos de negros no Brasil: os seus cantos e danças, suas crenças e formas de culto, os seus reis e rainhas, generais, capitães, embaixadores, secretários, guerreiros e soldados. Uma gente de fé e fantasia. Este estudo assume o risco de voltar ao assunto. Ele não foge de ser mais uma outra aventura de descrição do que se passa nas festas populares do calendário católico e nos folguedos religiosos em louvor dos santos de preto. Diante do perigo de reproduzir o que já foi tantas vezes repetido, articulo algumas defesas. Em primeiro lugar, A Festa do Santo de Preto não é um estudo isolado de uma congada ou de uma Festa de Nossa Senhora do Rosário realizadas todo ano em Catalão, no sul do estado de Goiás. 

Dois relatórios anteriores de pesquisas precedem este estudo e formam, com ele, uma pequena trilogia de investigações de campo cujo propósito sempre foi, mais do que descrever apenas um ou outro evento folclórico isolado, o de compreender o processo ritual, a ordem de relações e a organização do sistema simbólico, presentes nos modos como até hoje em Goiás os negros participam de cultos de louvor aos seus santos padroeiros. Se um dia forem reunidos os três estudos – dirigidos a rituais semelhantes em cidades diferentes – eles deverão traduzir momentos de um mesmo projeto: a explicação de algumas modalidades e alternativas da presença de negros nos sistemas de crenças e práticas do catolicismo popular. Em segundo lugar, o estudo pretende retomar um assunto antigo na literatura do folclore brasileiro, com a esperança de tratá-lo com um outro enfoque. Tem sido costume descrever o evento folclórico isolando-o por vezes do seu contexto mais imediato ou de sua conjuntura mais ampla, como um ciclo religioso/folclórico de festejos do catolicismo popular. São esses os casos em que um auto-dramático, uma dança ou um cortejo processional são exaustivamente descritos, dos passos às vestimentas dos figurantes, sem que os seus significados de contextualização – o religioso popular, o propriamente folclórico e o de suas articulações sóciorituais – sejam também considerados como objetos de estudo. No entanto, a consulta mais atenta a estudos recentes sobre o folclore referenda a presença de uma atitude mais crítica na análise de acontecimentos como os que estudo aqui. Ela integra o fenômeno folclórico descrito: a) no seu sistema de rituais populares, de que é uma parte e desde onde torna-se produtivo o seu estudo; b) na configuração das relações e representações sociais onde se combinam e, às vezes, se enfrentam o simbólico e o social, a festa e a rotina, os personagens do folguedo e os sujeitos do cotidiano da sociedade promotora.

Em Catalão, tudo o que o turista ou o pesquisador podem viver e presenciar, no Domingo de Nossa Senhora do Rosário e nos seus dias próximos, vai dos desfiles, passos de dança e “cantorias” de cada “terno de congo”, “moçambique”, “catupé” ou “vilão”, para a Congada , da Congada para o Reinado, do Reinado para a Festa de Nossa Senhora do Rosário e, finalmente, da própria Festa para a sociedade de Catalão: suas instituições religiosas e sociais, os sistemas de trocas entre suas pessoas, grupos e classes, espaços por onde se promove o trânsito do profano ao sagrado e do simplesmente festivo para o propriamente folclórico.3 A Antropologia Social chega á fronteira das sociedades complexas após haver se exercitado no estudo de sociedades primitivas. Dessa trajetória resultou uma insistente preocupação com inscrever fenômenos específicos, ou ordens muito particulares de sistemas de relações, no interior de estruturas sociais de maior abrangência. É desde o modo de operar da Antropologia Social que quero trazer, para o estudo de um tipo de ritual, o cuidado de descrever com o detalhamento necessário o evento folclórico em si mesmo e a trama de articulações sociais e simbólicas produzidas pelas diferentes categorias de sujeitos envolvidos entre a Festa, a dança e a assistência. As descrições e análises dos sete capítulos de A Festa do Santo de Preto começam e terminam dentro dos limites de Catalão, em Goiás. É preciso explicar ao leitor o que é a Festa de Nossa Senhora do Rosário, no mês de outubro, em Catalão. É preciso também descrever com detalhes, mesmo com os que parecem pouco importantes, como procedem ritualmente os ternos da Congada. 

Os capítulos 1 e 2 respondem pela tarefa e se somam a dois dos anexos apresentados ao final do estudo, com o propósito de introduzir, pelo caminho das descrições do processo ritual, as análises subseqüentes sobre a sua ordem simbólica e social. Sob as aparências de uma alegre desordem de dançantes de rua, é possível descobrir a ordem da Festa e da Congada, invisíveis aos olhos apressados do turista, essenciais aos cuidados de pesquisa do investigador. Um complexo sistema de trocas de ações de serviço envolve tipos de participantes e modos de participação, tanto nas esferas amplas das trocas entre os “irmãos” dançantes, os encarregados da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e outros agentes responsáveis pela Festa. 

O capitulo 3 traz a leitura da ordem da “festa do negro no mundo do branco” e procura dar conta dos modos como, de cada terno de “brincadeiras” até os limites da própria “Irmandade”, há um sistema de posições e relações cujo núcleo ritual está na Congada, objeto principal do estudo. Apenas através da descoberta do código de relações entre agentes da Igreja, agentes da Festa e agentes da Congada é possível compreender como e porque pessoas de origem e participação social tão diversas são capazes de se combinarem dentro da situação tão especial como a de uma “festa de igreja”. As relações entre diversos tipos de agentes envolvidos nos cuidados de prestar culto à Nossa Senhora do Rosário são discutidas o capítulo 5. Entre dois capítulos de pesquisa de relações sociais dentro de situações rituais, há um capítulo, o de número 4, dedicado a explicar quem são, na sociedade, dentro dos seus dias de trabalho e rotina, os reis e presidentes, generais e capitães, suplentes e soldados da Irmandade, da Congada e de cada um dos seus ternos de congos. 

No capítulo 6 são analisados momentos de relações de conflito entre agentes da Festa. Um dos problemas com que mais se envolve a Antropologia Social no estudo de situações de produção ritual é o das maneiras como os seus praticantes produzem e conservam explicações próprias para criar o conhecimento de suas origens e significados atuais; para justificar inclusive a sua própria presença dentro do ritual ou das instituições que o envolvem. 

A Congada de Catalão possui um mito de referência. Ele é muitas vezes repetido por diferentes categorias de pessoas da cidade e da Festa, sejam elas brancas ou negras. O mesmo mito de origem da Congada eu o escutei em outras cidades de Goiás e do estado de Minas Gerais. Ao lado de seu mito, piedosamente acreditado como a verdade dos motivos das crenças e das danças dos negros em louvor à Senhora do Rosário, tanto a Festa como as razões de participação pessoal em alguma de suas partes são justificadas por crenças e acontecimentos pessoais e coletivos passados entre os devotos e a padroeira. 

Qualquer “brincador” de um terno de congos sabe articular com facilidade uma trama simbólica de santos e devotos, de votos e promessas, de milagres e formas de reconhecimento. Na maior parte das vezes, elas são a origem dos motivos pelos quais um devoto de Nossa Senhora do Rosário vem a se tornar um de seus “brincadores” na Congada. O estudo do mito e a análise da ideologia do contrato entre o devoto e Nossa Senhora do Rosário são o que estudo no capítulo final. Nos três anexos há apenas algumas informações complementares. 

O leitor, a quem interessa, ao lado da análise, a presença de descrições e partituras, não se incomodará por certo com o número de vezes em que será convidado a viajar até um dos anexos. O anexo A completa o capítulo 2. Estão ali as letras dos cantos dos congos, algumas indicações de sua trajetória pela cidade e da sua coreografia durante os momentos da dança. O anexo B reúne partes de entrevistas onde os próprios congos falam, a seu modo, do seu ritual. O anexo C completa o capítulo 7. Estão ali as reproduções de versões do mito de origem da Congada, tal como foram gravados em Catalão e na cidade de Nova Veneza, também em Goiás. Durante os dias de trabalho em Catalão, a ajuda de algumas pessoas da cidade foi muito valiosa. Quero agradecer à família que soube hospedar, com o carinho dos goianos, um pesquisador curioso e insistente em fazer perguntas e exigir informações. A mesma coisa deve ser dita para as “pessoas da Festa e da Congada” que, entre os muitos cuidados da preparação e as preocupações dos seus três dias de maior movimento, souberam guardar ainda um pouco de seu tempo para dar e repetir informações e confidências. Terezinha de Jesus Coelho, uma amiga de muitos anos e hoje professora da Universidade Católica de Goiás, acompanhou comigo três dias de andanças atrás dos ternos de congos de sua cidade natal. Num momento do começo da noite do fim da festa, sentamos os dois numa beira de calçada e, consultando um mapa da cidade que eu levava comigo, calculamos com espanto que em três dias havíamos andado entre 50 e 60 quilômetros atrás dos dançantes do congo. 

Este foi o meu último escrito sobre rituais religiosos do catolicismo popular em Goiás. A pesquisa foi feita e o relatório redigido enquanto eu era professor da Universidade Federal de Goiás e pesquisador do seu Museu Antropológico. Em nome do Professor Acary de Passos Oliveira, quero agradecer aos companheiros de uma e outro. 


Carlos Rodrigues Brandão Campinas, primavera de 1981. 

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